Acerca de mim

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Sou apenas um pontozinho no Universo. Não existo fora de mim ou deste espaço, alguém me criou e aqui nasci. Mas nascer é o quê, começar a existir ou a viver? Cada dia encontro uma resposta, em cada dia uma resposta diferente. Por isso nada sei do que eu sou.

Roberto (Conto)

I

Depois do dia de ontem não sei se crerei mais em algo ou alguém para além de mim. Não desafio o poder de Deus, porque d’Ele nunca duvidarei, mas não acredito nas pessoas nem nas coisas. O computador avaria-se, os pratos partem-se, os copos idem, as pessoas mentem, são falsas como Judas, coitado, que não tinha culpa nenhuma de ter sido escolhido para traidor. Mas as pessoas são culpadas porque são más, interesseiras e invejosas. E são-no por vontade própria.
Desiludi-me com a vida. A Xana é uma mentirosa de primeira categoria. Mente que se farta e o pior é que nunca está satisfeita com as mentiras que inventa, está sempre a inventar novas, para se aperfeiçoar.
Sei que não devo precipitar-me nos julgamentos das pessoas mas hoje estou mesmo muito zangada com a Xana, que era suposto ser a minha melhor amiga. As mulheres são muito traiçoeiras, principalmente para as amigas, e para as melhores amigas ainda mais.
O Roberto é o principal culpado deste meu desengano com as pessoas, foi ele a “alma caridosa” que resolveu abrir-me os olhos; não sei é se eu queria deixar de andar cega, como pelos vistos andava…
Os homens são insuportáveis, com a sua mania de saberem sempre tudo! E são ciumentos, veem uma mulher a confiar noutra e tratam logo de destruir essa confiança…
Eu pensava que a Xana era minha amiga, daquelas que o são de coração… e eu era amiga dela, era mesmo, ela não tinha o direito de me trair, não tinha…
A nossa amizade vinha dos tempos da escola. Juntas estudávamos, juntas lanchávamos, juntas íamos para as aulas. Foi a ela que contei quando fiquei menstruada, a ela que contei quando me apaixonei pelo Rodrigo, foi ela a primeira pessoa a saber que eu ele íamos casar.
A Xana tornou-se parte de mim. Mesmo depois de ambas termos constituído família continuamos amigas, nada nos separava… achava eu.
Foi depois do meu divórcio que a Xana começou a mudar. Ela continuava casada, eu fiquei livre, desimpedida, sem filhos. Deve ter sido nessa altura que a inveja se instalou no seu coração; criticava tudo o que eu fazia, tudo a seus olhos era mau e pecado, tudo aproveitava para me deitar à cara que eu era divorciada e portanto pouco virtuosa.
O divórcio não foi por minha culpa, apesar de eu achar que a culpa nestes casos não tem um só lado mas um bocado dos dois. O Rodrigo apaixonou-se por outra, engravidou-a e deixou-me. É esta a história.
Talvez a culpa tenha sido minha, ao adiar indefinidamente a maternidade. Devia ter percebido que ele tinha necessidades paternais que precisavam de ser satisfeitas. Fui egoísta, admito-o. E dei-lhe o divórcio quando mo pediu, sem reclamar.
Acho que ele pensou que eu ficava aliviada. Talvez a minha indiferença ao pedido de divórcio o tenha magoado, não sei… o que sei é que ele não me fala e podíamos ter continuado amigos. Eu teria sido amiga dele, se ele quisesse, mas não quis e afastou-se de vez. Tem três filhos.


II

Quando olho para trás, vejo às vezes que eu era fria para ele, outras vezes desculpo essa frieza pela culpa que ele tinha dela. O Rodrigo e eu nunca nos sintonizamos, tínhamos gostos diferentes. Acho que apenas nos ligava o sexo, que era espetacular. De uma certa maneira tenho inveja da mulher dele, pois eu nunca mais encontrei um homem com quem me relacionasse tão bem na cama.
E eu tentei, ó se tentei! Mas depois de três ou quatro encontros desinteressava-me desses homens e acabava tudo. Acho que nasci para estar só, ninguém me entende e eu se calhar também não me esforço para entender os outros. Ando cega, como disse o Roberto.
Talvez, talvez eu tenha sido cega toda a vida, mas se assim é, acho que ainda o sou. Ainda não vejo o que queria ver, ainda não sinto que finalmente abri os olhos.
Claro que os abri em relação à Xana, mas a Xana não é o mundo, há muito mais gente na minha vida para além dela. Ou, pelo menos, houve, porque atualmente acho que estou a ficar só, a relacionar-me cada vez menos com as pessoas, acho que até fujo delas.
Depois do divórcio, que encarei como natural devido à falta de interesses comuns entre mim e o Rodrigo (à exceção do sexo) demorei quase um ano a relacionar-me afetivamente com um homem. E mais valera que não o tivesse feito.
Conheci o Carlos no casamento de um primo, era um dos amigos dele. Juntaram-nos na mesma mesa por ambos sermos divorciados e não termos levado companhia.
Gostei muito de conversar com ele, era uma pessoa muito divertida, dançamos muito, acho que até bebi demais, levada por ele e pela alegria do ambiente. Acabamos na cama, na minha cama.
Não tenho memória dessa primeira noite com ele, devido talvez à bebida, mas foi assim qualquer coisa entre a violência e a crueldade. Despedimo-nos na manhã seguinte, um pouco embaraçados. Ambos sob o efeito de uma valente ressaca.
Uns dias depois ele telefonou-me. Não me lembrava de lhe ter dado o número do meu telemóvel, mas ele conseguiu-o e eu até fiquei lisonjeada com isso.
Saímos algumas vezes mas, apesar de nos divertirmos muito, ele despedia-se educadamente e não tentava ir mais longe do que alguns beijos, trocados no interior do automóvel.
Mas uma noite o desejo foi mais forte e convidei-o a ficar comigo. Um grande erro.
Depois de alguns beijos no sofá, ele pegou-me ao colo e levou-me para a minha cama. E fez amor comigo tão violentamente que ainda hoje me custa recordar. Uma cama transformava-o completamente, tornava-se outra pessoa, alguém que eu não conhecia nem desejava conhecer.
Acabei com ele; recusava os seus convites para sair, demorava a atender (quando atendia) o telemóvel. E ele começou a perseguir-me.
Comecei a ter muito medo dele e resolvi passar uns tempos em casa de uns tios, no Alentejo. Vivi por lá um ano.
Quando regressei disseram-me que o Carlos tinha casado novamente. Fiquei aliviada e resolvi nunca mais me envolver com ninguém. Durante uns tempos cumpri, até conhecer o Filipe.


III
 

Mas o Filipe foi outra desilusão. Aliás, só me envolvi com ele por pura necessidade física, que quando foi saciada me deixou um gosto amargo no coração.
O Filipe era um cavalheiro, um perfeito cavalheiro, até na cama. Sempre muito gentil, muito compreensivo, até aborrecia. Fartei-me e acabei com tudo.
Ficou a experiência, que serviu para me avisar contra futuros encontros com homens gentis. E fiquei a saber que sou uma insatisfeita, que ponho defeitos em tudo e em todos. Porque o Filipe era perfeito, tão perfeito… mas eu não nasci para viver com a perfeição, sou uma pessoa com defeitos, defeitos que eram bastante evidenciados quando estava ao lado do Sr. Perfeito.
 Eu teria preferido um homem menos perfeito e mais parecido comigo…
Depois dele tive alguns encontros que acabaram na cama, na minha cama, claro, eu nunca fui a casa de ninguém. E passei a viver assim, sem uma relação a sério, apenas encontros de ocasião.
Foi por causa disso que a Xana se modificou.
Talvez tenha passado a olhar-me como se eu fosse uma mulher fácil, talvez tenha tido medo que eu lhe roubasse o marido, que aliás aproveitava todos os momentos que podia para me piscar o olho e fazer um movimento com a língua que me enojava. Mas eu nunca o encorajei a nada, antes pelo contrário, fazia de conta que nem reparava nele e nos seus modos nojentos. E se nunca disse nada disto à Xana foi porque não queria fazê-la sofrer.
A Xana tem quarenta anos, está casada há quinze e tem dois filhos. Eu também tenho quarenta anos, estou divorciada há seis e não tenho filhos. Ela trabalha em part-time, para poder acompanhar os filhos, eu trabalho a tempo inteiro e alguns sábados.
Somos da mesma idade mas temos percursos de vida diferentes.
 A Xana é uma senhora, uma respeitável mãe de família, e eu sou uma mulher divorciada, sem companheiro certo. Acho que o tempo se encarregou de nos afastar, de acabar com a amizade de uma vida inteira; a nossa amizade não resistiu ao ciúme da Xana, à sua falta de confiança em relação ao marido, à sua desconfiança em relação a mim.
Não sei o que se passa na cabeça dela, não percebo por que mudou se eu não mudei. Casada ou divorciada, a minha amizade por ela continuava inalterável.
Até ela começar com as maledicências e boatos. Isso doeu-me.
Quando o Roberto começou a avisar-me contra ela, eu até me zanguei com ele, durante uns tempos nem lhe falei. Mas ele insistia, fazia por se encontrar comigo “casualmente”, acompanhava-me a casa depois do trabalho e falava-me novamente da Xana. E eu pedia-lhe que se calasse ou nunca mais aceitaria a sua companhia.
O Roberto é um querido, há mais de vinte anos que o conheço. Sempre nos demos bem, eu sempre o vi como um amigo mas a Xana gostava dele, toda a gente sabia disso, até ele. Mas ele nunca lhe deu esperanças, fazia de conta que não reparava nos olhares que ela lhe deitava, olhares de cachorrinho perdido… perdida de amor, era como ela andava.
Depois conheceu o Álvaro, deixou-se levar na cantiga dele, engravidou e casou. Até hoje. E que continue.
Ontem o Roberto acompanhou-me a casa mais uma vez. De início não me falou da Xana. E eu estava cansada e convidei-o a entrar.
Conversamos enquanto eu preparava o jantar, para o qual o convidei.
O Roberto tem uma conversa agradável. Fala de tudo, sabe de tudo um pouco e do que não sabe não inventa nem finge que sabe. É por isso que eu gosto tanto de conversar com ele, porque falamos de igual para igual, ele fala do que sabe, eu falo do que sei e do que não sabemos aprendemos um com o outro.
É solteiro, nunca casou, apesar de não lhe faltarem pretendentes; nunca se interessou muito por compromissos, teve muitas namoradas mas nunca levou nenhuma a sério. A sério só leva a sua carreira de professor do 1º ciclo, adora crianças e é a pessoa mais íntegra que conheço.

Lu Serina

(Continua)

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